...sentava-me no café do vizinho com uma pedra amarelada ou já cinzenta de tantos anos a servir de balcão e pedia por favor, sempre por favor mesmo sendo um serviço pago, uma imperial, um chá, um whisky, um café duplo, dependendo do dia, da hora, da vontade e do tempo. Digo frequentemente porque parece mal dizer todos os dias, não sou cliente habitual, muito menos me tratam por tu e me acolhem com um dos filhos ou dos sobrinhos. Sou mais um parente distante que por vezes aparece e por o fazer surge já na forma de receber um certo odor de saudade, uma pergunta acerca do tempo que passou, dos actos que decorreram entretanto.
Observava com carinho os cabelos mágicos da criatura que de certo não resultou do amor do proprietário e sua esposa, dois seres baixos e diria eu criados a pão e trabalho de enxada, duros de feições como os calhaus da serra, um sotaque de vs e bs trocados que enchiam o ar de palavras imperceptíveis e de um vernáculo sem carácter ofensivo que muitas vezes me faziam contorcer de dor e prazer perante tal drama da vida rústica na cidade moderna. Escolhia uma mesa ao acaso que variava de forma metódica para não demonstrar uma criatura de hábitos, imaginando sempre que se o fizesse um dia a policia ali a perguntar por mim, talvez por algum crime de paixão, algum artista mais atrevido que me tentasse levar os cabelos mágicos da moça. Então na minha cabeça, via dois senhores de roupa ligeira, ar sério a entrevistar um pai e uma mãe chorosos, apontando para a mesa do canto dizendo, sentava-se ali todos os dias às 10, lia um livro ou olhava em redor durante uma hora, saia para algum lado que não lhe sei a vida fora daqui e voltava depois das cinco para ficar até quando se lhe desse a vontade ficar, se soubesse teria servido veneno para os rato misturado com a bebida naquele dia. E seria assim na minha ideia romântica de ser perseguido por amor que eu cometeria a loucura do crime e destruiria uma série de vidas, só para poder sentir na pele a sensação por certo deliciosa do martírio.
Imaginava flores atiradas ao chão e rios de lágrimas, pedidos de casamento no meio da rua, bilhetinhos nas chávenas do chá dizendo és tão bonita palavras altas respondendo és tão parolo oh cota. E no entanto eu e ela na mesma escola quando pequenos, na mesma turma, ela lá à frente junto da professora com as amigas a fazer o que sabia tão bem fazer, portar-se bem, copiar pela esperta do lado e silenciosamente acabar o ciclo ao mesmo tempo que eu sem nunca ter estudado que a via muito bem sair após as aulas com um tipo qualquer em roupas sujas de cimento e tinta, fumando um cigarro achando-se estrela de cinema. Voltei para onde tinha nascido porque quem me fez nascer já não nesta casa nem neste mundo e assim assumi o meu lugar de patriarca à cabeça da mesa ordenando que a cadeira vazia ao meu lado direito arrumasse a roupa e a loiça, que a cadeira vazia ao meu lado esquerdo comesse tudo a até ao fim, mesmo sendo o jantar sopa de grão que me fazia querer arrancar o estômago à colherada ao invés do engolir colher após colher daquele caldo quente e odioso. Tinha-a voltado a descobrir por engano, entrando numa porta aberta ao lado de um janela enorme com um anúncio gigante de uma marca de tabaco à mistura com garrafas de aguardente nas quais a espessura da camada de pó atesta a antiguidade, os mesmos cabelos sem dúvida mas algo na cara menos alegre menos brilho, mas o motivo da minha paixão mantinha-se como sempre, a beleza grande e serena. Não a reconheci antes sair. Levava-a na cabeça por engano quando percebi que ela afinal ainda existia neste bairro. Nunca deveria ter saído como eu sai, não deve ter querido seguir para a França ou para o Luxemburgo com o namorado do cimento. E agora onde estaria ele?
Morava perto percebi rapidamente que a curiosidade estava a dar lugar a uma necessidade de a ver, seguia-lhe os gestos, adorava a forma como pousava o tabuleiro na mesa suja de café derramado, como suspirava frequentemente olhando para a rua, para o sol que nunca mais se afastava da rua e lhe dizia que estava na hora de ir embora, de voltar ao sitio de onde vinha todas as manhãs, e eu suspirando para que se o sol fugisse que a mão dela se estendesse para mim e a boca dela me dissesse vem, vamos juntos hoje cozinho para dois, sento-me à tua direita e não precisas de ordenar que limpe a loiça e arrume a roupa, não te faço a sopa que detestas e espero acordada que voltes do café depois do jantar, e deito-me junto de ti e tu tranquilo, sem pensar que vives sozinho. E eu não vivo sozinho, vivo numa cama com outra pessoa que teria de pedir para dormir no sofá, avisar para não fazer muito barulho porque a criança no quarto ao lado cheia de traumas porque filha de um lar destroçado.
Apagaria a luz e no dia seguinte a criança e a mãe desaparecidas, roupas, brinquedos, cheiros, tudo apagado e eu feliz junto dos cabelos, a respira-lo como se fossem ar, eu a abraça-los e eu na rua a vê-la com o tipo sujo com as mesmas manchas de cimento e eu perdido de ciúme e sem o meu ar para respirar, eu a passar por eles na rua estreita entre a minha casa e o café, eu de carro e eles a atravessar a passadeira, e na minha cabeça o policia a entrevistar os donos do café apontando para o canto observando com o canto do olho a cadeira mais afastada, perguntando acerca do álcool, do café, dos olhares, das manobras suspeitas. E promessas de veneno para ratos no próximo café, na próxima cerveja, e no entanto o que parecia um crime apenas uma distracção de momento, apenas a imaginação de dois senhores sérios vestidos com roupa ligeira a perguntar por mim, eu distraído julgando que o pé carregava no travão e quando dei por mim curvava a esquina, virava na próxima à esquerda como quem deseja seguir para os lados do rio, e nem notei se alguma nódoa de cimento no chão depois de passar.