quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A fome...

... ardia no meu estômago como a chama branda e desgastante do lixo que vejo na encosta. Não fazia ideia que doía tanto até que um dia resolvi deixar de comer, não porque não possa, mas porque não quero. Decidi não ser a falta de trabalho nem a falta de dinheiro que me poderiam impedir de comer, decidi eu vou deixar de comer e nesse dia tudo tão fácil e eu esquecido do que cheira a farinha e o feijão, de como sabem bem os ovos cozidos misturados com picante.
Procuro trabalho pelas ruas desta cidade onde não faltam portas abertas para entrar gente branca, gente preta com cartões, portas onde seguranças de farda e rádio e pistola no cinto me impedem de parar dizendo que não há nada ali para mim e por momentos esqueço que preciso disso e convenço-me de que volto para casa como se houvesse feito um dia grande de labor e tivesse recebido um elogio do chefe. Fazia tanta diferença um bom trabalho, por vezes parecia que o fogo brando em mim acalmava e o álcool e as drogas para aguentar as horas de pé começavam a surtir efeito levantando-me devagarinho com o elogio e eu tão pertinho de me sentir bem, tão pertinho de esquecer que em casa nada senão umas quantas paredes tortas cobertas por placas de lata esburacada que caem a cada nova chuva e me tentam tirar a vida quando eu deitado no meu canto durmo duas ou três horas antes de trabalhar.
Nunca percebi de facto porque me preocupo em voltar, meia dúzia de pessoas que não conheço por outros cantos das mesmas paredes, gente a quem não posso chamar família e que me ameaçam de morte se não entrego metade do ordenado para pagar o canto que me sobra todas as noites. Olho a cada manhã, enquanto o autocarro desce aos solavancos pela estrada esburacada, as casas finas na baía, e como seria poder um dia fazer planos para viver lá, receber a família, pai, mãe no domingo, tirar da prateleira uma coisa fina para servir, ordenar à criada que preparasse o almoço de domingo. Eu ontem à porta de um sítio desses e o segurança para mim a perguntar que ali fazia, a ordenar que nada ali para mim, que procurasse noutro sítio. Subi a rua, voltei à esquerda desci, voltei a subir para a direita e lentamente subi subi subi, entrei noutro bairro que não o meu, procurei uma porta aberta e quando encontrei a primeira afirmei, quero metade do salário de cada um que aqui mora, esta casa é minha a partir de agora. A dor aguda do aço apagou o fogo lento de lixo do meu estômago, o cheiro mais forte, não a dejectos nem a coisas atiradas fora, um cheiro forte a terra seca enquanto os meus olhos se fixavam num tecto branco sem mácula, nunca um branco tão limpo, o conforto nos meus músculos sem peso para suportar e um sono lento substituiu os meus pensamentos. O fluxo corria suave para o meu lado e por ali fluía a minha vida, pensei, talvez veja outra encosta talvez a suba por vezes para visitar um familiar distante e oferecer as roupas que não gosto e comprei por capricho quando acordar de novo.

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