segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Custa-me...

... falar de dores e tristezas mas de algum modo elas hoje andaram lá no fundo da minha mente, para lá do ultimo plano a passear, a acenar insistentemente como aquelas pessoas que nos vêm na rua e nós as vemos a elas e pensamos pode ser que não tenham visto e elas param exactamente no sítio para onde desviamos o olhar e acenam acenam as mãozinhas até que desistimos e vamos lá dizer-lhes olá como está como vai a vida muito trabalho só passear por aqui por ali onde tens estado para onde vais, o rol costumeiro de palavras e perguntas das quais não queremos saber resposta nem ouvir retribuição. Enfim falava de dores e tristezas e talvez por me ter sentado a escrever me tenham surgido de súbito como a coisa mais importante para escrever. Doe o corpo e a mente e a alma e depois de tudo o que doe doe ainda mais um pouco estar longe de casa. Vivo no meio de um bairro a menos de quinhentos metros da casa do presidente, e diria-se que isso por si só seria suficiente para que se determinasse ser um bom bairro, não o é, no entanto a minha casa lá bem longe onde ela vive e ela se deita e ela tem as suas coisas, aqui comigo apenas uma lembrança, algo que me colocou entre as roupas da ultima vez que lá estive e que já perdeu o cheiro mas mantêm a emoção que revivo todas as manhãs quando abro a gaveta e vejo a prenda dela, a pego, a cheiro e uma peça de roupa por mais simples que pareça por vezes tão como comida, como o bater dos talheres que nos faz salivar. Somos de facto seres de hábito e de habituações. Sinto-lhe a falta hoje por não a ver, sentia-lhe a falta antes por não a ouvir, antes disso por dela não saber e no entanto agora que ela e eu juntos, eu longe, sem vontade de romances sem desejo de carne que cresça em mim, olhando atributos que não os dela e simplesmente rejeitando o que vejo ou considerando que tudo diferente e que eu não deste mundo onde vivo mas talvez de outro diferente, mais regrado, mais cheio de pudores. E por detrás das tristezas que passeavam na minha mente hoje os meus pudores mortos, enterrados e eu um animal selvagem correndo a rua procurando sem rumo por uma carcaça, por uma presa que sem dó sem escolha devoraria no segundo imediato à sua morte. Talvez apenas me pense assim e de facto nunca esse o meu feitio, talvez julgue que sinto demasiada dor pelo afastamento ingrato daquilo que considero realidade e modo de vida, ou talvez apenas uma certa complicação de ideias, um certo desconcerto de regras e morais. Talvez eu perfeito para apenas sonhar com dores e romances que nunca haverei de ter, como pessoas que parecem merecedoras de total dedicação. Talvez um dia, numa outra vida se a reencarnação um facto e eu libertino, conquistador, despreocupado, não como eu agora. Sou como sou e aceito tantas vezes que o que passei levou-me a um patamar em que passo por outras provas e as ultrapasso com menos drama porque tudo complicado e no entanto tudo com hipóteses válidas de solução mas digamos que me custa fazê-lo sem ti.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Respiro...

...e em mim este ar rarefeito foge para outros sítios, respiro novamente e o ar foge. Por vezes dava por mim parado a olhar sem razão algumas pessoas que passavam lá fora enquanto os outros em meu redor concentrados nos papéis e no computador, achava estranho porque razão uma empresa precisava de um edifício tão grande para se sediar e depois porque razão em volta meia dúzia de casas baixas, alguns terrenos vazios e uma escola. Um pouco mais à frente mais dois ou três, atrás uns cinco ou sei, mas todos mais baixos que este, e porque seria, nunca tive coragem de perguntar. Dizia que observava as pessoas que passavam lá fora, já pequenas pela distância, da escola conseguia por vezes ver crianças a correr sem nexo de um lado para o outro, dada a altura já uma certa extensão do rio, um pouco da Costa da Caparica e naqueles dias de sorte um navio de cruzeiro a subir ou a descer o rio em direcção a um qualquer paraíso tropical que insistem em colocar em grandes cartazes ali junto da entrada da autoestrada, que me vão mostrando quanto de mundo ainda me falta conhecer, eu que uma vez mais novo, ainda na escola, fui visitar o Cabo de Sagres e perguntei à professora de o mundo acabava ali, ela rindo perante o disparate disse-me que não, que ali um grande rio que unia dois mares, um pequeno e um muito grande e que depois do rio África, Marrocos, como se estivéssemos em Lisboa e víssemos a Caparica, ou melhor a Trafaria como eu daqui consigo ver. Bons tempos em que na minha cabeça um mundo de desconhecimento e de cegueira, onde tudo espantoso e imenso, tudo gigante perante o meu tamanho. As escadas do autocarro imensas, o corrimão onde dezenas de mãos se agarravam tão acima da minha mão, eu a agarrar-me ao banco, imaginando que no próximo cruzamento de avenidas, caído no chão porque um choque, porque uma travagem, e chegando a casa, como funciona o travão do autocarro pai, e nenhuma palavra porque o jogo na televisão e também ele tão imenso e tão distante a boca dele dos meus ouvidos, talvez por isso não se perceba a resposta que deu, talvez por isso não se consiga ver os movimentos da sua boca. Um dia mais tarde percebi o que dizia, comecei a ouvi-lo melhor, mas não naquela altura. Entrava em casa e comia connosco, silencioso pensando no trabalho, vinha de gravata e chapéu, gabardina no inverno e realmente nunca lhe percebi o ofício excepto que o fazia na baixa da cidade numas janelas brancas ladeadas de paredes amarelas, uma porta em madeira que anunciava imponência. Pensei que talvez eu ali um dia e no entanto um pouco mais longe onde os autocarros deixam de ser amarelos e ganham cores diferentes, menos naturais para o que são, e têm um aspecto de provincial que me faz pensar que eu a caminho do campo, da casa de meus avós, cheio de estradas sinuosas e caminhos longos, hoje em dia uma hora, antigamente três, malas, encomendas para lá, produtos da terra para cá, agora tudo melhor, não há necessidade da avó quando se tem o supermercado mesmo à beirinha. Pensava na simplicidade de viver assim, e por vezes desiludido com a necessidade de ter que carimbar mais uma factura suspirava, puxava o ar que me fugia para todo o meu corpo excepto para onde devia e libertava-o abanando a cabeça num negar da própria necessidade de voltar a ser inocente.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Não quero...

... continuar a fingir que vivo uma vida boa só porque cada vez que regresso a casa posso ficar a olha a parede e imaginar que ganhei muito durante a minha ausência. Não há nada neste mundo que pague ou alguma vez me compense do tempo longe dos meus. Luanda foi uma visão de terror quando aqui cheguei, assustei-me com a extensão imensa do bairro de lata que vi assim que o avião curvou para aterrar. Passou-me pela cabeça meu Deus que horror assim sem mais nem menos lembrei-me de Portugal, de que também há coisas assim por lá e que não podia ser tão mau. Quase um ano passou e eu por aqui vou indo de casa ao trabalho, de casa à Ilha, de casa à praia, de casa ao supermercado, e a cada ida ali ou acolá sinto o meu vazio aumentar pela falta imensa de um pouco mais de brilho na minha vida, um pouco mais de satisfação que a cada dia deveria crescer ou manter-se, não desaparecer cada vez mais. Mudei de trabalho, voltei a casa e regressei novamente, e esse avião que me trouxe parecia uma faca afiada que entrava lentamente entre as minhas costelas e se instalava no meu pulmão cortando a respiração, deixando-me a engolir ar sem o conseguir. Sentei-me numa cadeira durante uma semana magoado, aflito com o panorama que tinha deixado em casa, um amor tão batalhado, tão cheio de altos e muitos baixos, de dores e afastamentos, quando finalmente esse amor restabelecido e planos de futuro juntos, eu de novo sentado nesta cadeira a muitos mil quilómetros de lá. E novamente a questão se tu a minha casa meu amor, porque eu não ai contigo. E a resposta por parva ou por incrível que pareça pelo menos triste, nenhum de nós tem a coragem para mudar o que tem de forma a que o que tem passe a ser o que temos. É assim uma vida moderna e internacional que recebi, que me diz estás no caminho certo, vais lá chegar, e depois a minha cabeça complicada ajuda a dizer que vais lá chegar, mas para lá chegares vais ficar muito tempo longe, vais perdê-la e vais voltar a sofrer por que tu e ela juntos, tu e ela separados sem sentido.
Quando o amor nos obscurece a visão, torna-se necessário cura-lo, esquecê-lo, perdê-lo, ou entrar nele, viver dele, viver para ele. Já me imaginei a fazer a lida da casa, o jantar, o almoço enquanto procuro por emprego ai. Tentar escrever que sempre gostei tanto e sempre foi uma das minhas ocupações. Talvez ai encontrar uma ponta às histórias que andam cá dentro. E talvez um dia quem sabe eu novamente a fazer o que gosto, junto de ti, e nós os dois felizes, despreocupados porque juntos, porque sem razão para estarmos de outra forma.

sábado, 21 de agosto de 2010

Sonhei...

...contigo esta noite, eras uma parte ausente de mim mesmo quando olhava em redor e não te via, continuava a achar que tu no sítio onde não tinha ainda olhado. Ao meu redor um sofá branco imenso de pele onde os meus amigos, pelo menos alguns deles, se sentavam relaxados numa pose e com o sorriso de quem encontrou a posição certa para o fazer. Uma mesa de vidro e ferro no meio, um tapete castanho claro, eu o único que sentado no chão, e como dizia antes, olhava em redor e o redor um género de nuvem da qual apenas conseguia perceber que nos envolvia e não demonstrava qualquer zona por onde se pudesse antecipar uma saída. Perguntava-lhes por ti, onde está? Olhava para um telefone cinzento e deformado com uma carapaça dura e que não tinha teclas e somente apareciam nomes de pessoas o teu lá e eu incapaz de escrever, a ansiedade de um som vindo dele e nunca qualquer som. Depressa eu sentado numa mesa de madeira enegrecida pelo tempo e pelos líquidos que nela por certo tantas vezes pousaram, olhar o fundo de um prato onde letras castanhas antigas falavam sobre o cardápio milenar desta casa com cheiro a vinho e cerveja, com balcões em parede caiada, traves de madeira e telhado de duas aguas bem visível de onde estava sentado. Casa cheia com gente da minha idade e apesar de tudo ninguém conhecido, nem uma cara familiar, percorrendo olhos tentando encontrar quem te substituísse e nem uma semelhança, nem uma faísca. Sentado ao meu lado o dono em deveres de apresentação olha para mim enquanto eu olho para o prato e me explica o contexto de fusão antiga portuguesa e comida chinesa. Então reparo atrás do balcão na quantidade enorme de gente de cabelo preto e pele amarelada, vestidos de calças azuis e camisa azul às riscas como se tivessem acabado de vir de um qualquer franchise moderno. Nos armários inevitavelmente em madeira de cor preta caixinhas de massa recheada recém cozidas fumegam, e eu só penso que faz massa dim-sum numa adega portuguesa no meio de copos de barro e rodelas de tinto em relevo no balcão e nas mesas. Que faz este senhor de bigode magro e cabelo grisalho ao meu lado, olhando o meu ouvido e falando para ele como se eu interessado no que me diz, enquanto tento encontrar no fundo do prato uma linha que diga dim-sum e só encontro rojões à transmontana, cozido à portuguesa, pézinhos de coentrada, arroz de polvo e o meu desespero sobe sobe porque ali o que quero e no entanto não o consigo dizer, não o consigo explicar ao senhor que fundiu o tasco e o restaurante chinês e lhe deu o ar de adega de quinta. Mas nunca neste sonho os teus olhos, e é isso que me faz acordar de manhã, procurar a tua mão ao meu lado e por vezes, ultimamente nunca a encontro, e talvez porque nós longe um do outro não possamos sentir o conforto que vem da partilha da mesma cama, talvez por isso os meus sonhos mais complicados, tu sempre mais longe, tu sempre noutro lado e eu sempre a sentir a tua falta. Não sei porquê neste sonho o teu nome Mariana.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A fome...

... ardia no meu estômago como a chama branda e desgastante do lixo que vejo na encosta. Não fazia ideia que doía tanto até que um dia resolvi deixar de comer, não porque não possa, mas porque não quero. Decidi não ser a falta de trabalho nem a falta de dinheiro que me poderiam impedir de comer, decidi eu vou deixar de comer e nesse dia tudo tão fácil e eu esquecido do que cheira a farinha e o feijão, de como sabem bem os ovos cozidos misturados com picante.
Procuro trabalho pelas ruas desta cidade onde não faltam portas abertas para entrar gente branca, gente preta com cartões, portas onde seguranças de farda e rádio e pistola no cinto me impedem de parar dizendo que não há nada ali para mim e por momentos esqueço que preciso disso e convenço-me de que volto para casa como se houvesse feito um dia grande de labor e tivesse recebido um elogio do chefe. Fazia tanta diferença um bom trabalho, por vezes parecia que o fogo brando em mim acalmava e o álcool e as drogas para aguentar as horas de pé começavam a surtir efeito levantando-me devagarinho com o elogio e eu tão pertinho de me sentir bem, tão pertinho de esquecer que em casa nada senão umas quantas paredes tortas cobertas por placas de lata esburacada que caem a cada nova chuva e me tentam tirar a vida quando eu deitado no meu canto durmo duas ou três horas antes de trabalhar.
Nunca percebi de facto porque me preocupo em voltar, meia dúzia de pessoas que não conheço por outros cantos das mesmas paredes, gente a quem não posso chamar família e que me ameaçam de morte se não entrego metade do ordenado para pagar o canto que me sobra todas as noites. Olho a cada manhã, enquanto o autocarro desce aos solavancos pela estrada esburacada, as casas finas na baía, e como seria poder um dia fazer planos para viver lá, receber a família, pai, mãe no domingo, tirar da prateleira uma coisa fina para servir, ordenar à criada que preparasse o almoço de domingo. Eu ontem à porta de um sítio desses e o segurança para mim a perguntar que ali fazia, a ordenar que nada ali para mim, que procurasse noutro sítio. Subi a rua, voltei à esquerda desci, voltei a subir para a direita e lentamente subi subi subi, entrei noutro bairro que não o meu, procurei uma porta aberta e quando encontrei a primeira afirmei, quero metade do salário de cada um que aqui mora, esta casa é minha a partir de agora. A dor aguda do aço apagou o fogo lento de lixo do meu estômago, o cheiro mais forte, não a dejectos nem a coisas atiradas fora, um cheiro forte a terra seca enquanto os meus olhos se fixavam num tecto branco sem mácula, nunca um branco tão limpo, o conforto nos meus músculos sem peso para suportar e um sono lento substituiu os meus pensamentos. O fluxo corria suave para o meu lado e por ali fluía a minha vida, pensei, talvez veja outra encosta talvez a suba por vezes para visitar um familiar distante e oferecer as roupas que não gosto e comprei por capricho quando acordar de novo.

Meu amor...

...como sinto a falta dos teus braços em torno do meu corpo, e por dizer teus braços talvez queira dizer de ti em torno de mim ou da tua voz a soar nos meus ouvidos, porque não dizer do teu coração que bate bate e eu extasiado encostado ao teu peito o ouço. Porque não dizer que anseio ouvir esse trabalhar e maravilhar-me uma vez mais com a magnifica simplicidade que te faz respirar, que te dá cor, que te faz estar junto de mim. Se ao menos nunca nós longe e por dizer se ao menos, quero dizer que porque tão longe eu de ti e tu de mim, porque tão longe os nossos corpos quando na mente a minha casa a dois passos do meu trabalho e a tua casa a dois passos do teu trabalho e se tua a minha casa porque não tu a dois passos de mim? Faz doer esta espiral de questões que não sabemos responder meu amor, faz dor forte este medo que aumenta a cada dia de que a vida sem trabalho não seja a mesma que com trabalho e no entanto minha querida, se não fosse o trabalho que me mantém tão distante nesta outra metade do globo onde tu não estás, se não fosse o trabalho eu ai contigo ou tu aqui comigo, qualquer forma seria boa, qualquer forma que me mantenha junto a ti é boa exceptuando não poder trabalhar, não poder ser realizado. Ambos lutamos demasiado meu amor para agora desistir de ser aquilo que queremos e talvez por isso não tenhamos um do outro o que também queremos. E assim tu sentes a minha falta e eu sinto a tua falta, os nossos corpos tremem com ânsia de prazer e por vezes talvez tremam por outros corpos que não os nossos. Talvez tudo desapareça a cada regresso, talvez no segundo em que as portas automáticas do aeroporto se abram, e tu sempre à esquerda da rampa com o teu olhar sereno e o teu cabelo claro aos caracóis que te amo, com a tua pele clara que me faz pensar que tudo na minha vida vive para ela, e quando nos abraçamos, quando me dizes olá querido ou olá amor ou olá ou finalmente ou um suspiro de igual modo relacionado com o aliviar de uma força opressora, quando me dizes isso meu amor e eu te abraço e beijo ali em frente de toda a gente que queira ver e perceber que não se ama por escolha, ama-se porque não podemos controlar o que queremos quando só se quer os teus braços. Calmamente levas-me para casa porque não quero conduzir, não quero tirar de ti os olhos e levas-me para casa abrimos a porta, as malas caem no chão, as malas ficam junto da porta e eu só perdido na alegria de tu só minha, de eu só teu novamente, eu desejando que onde trabalho desaparecesse do mapa, eu desejando que fosse ali já junto da porta, e eu desejando que esta carta apenas um fragmento da minha imaginação enquanto te beijo ao invés de escrever uma carta enquanto imagino que te beijo novamente.

Sinto a tua falta...

sábado, 14 de agosto de 2010

Gente...

...velha que sentada num banco de jardim ou num autocarro tem o mesmo olhar vago e distante, já os vi de diversas cores, diversas nacionalidades e no entanto em todos o mesmo olhar vago o mesmos ombros descaídos. Por aqui são tratados com o respeito que a idade lhes concede, caminhando por ai com o lábio inferior a segurar um cigarro enquanto coxeiam ou apenas andam devagar. Sinto uma ternura exagerada por esta gente que um dia foi como eu olhando os que passavam e lembro-me dos meus velhos, dos meus avós, duas senhoras uma cheia de força que criou filhos e filhas cultivou terra e a muita vontade criou netos e netas, criou-me a mim durante algum tempo e eu a beijo cada vez que regresso a casa, lembro-me da outra doce e pequena, sempre com um abraço apertado para cada neto que também ajudou a criar, que também viveram na casa dela e cresceram longe dos pais, deles os homens havia um duro e moldado pelo trabalho ingrato que a sua vida lhe deu, partia pedras numa pedreira e era bruto, não demonstrava que sentia nem que sofria por nós, morreu sozinho, numa noite rodeado de gente com a mesma idade dele, sem força já para ser o que era e da ultima vez que o vi senti tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir ter com ele e leva-lo a passear, lembro-me do outro que uma vez ficou 2 anos dentro de casa sem sair e eu a compreendê-lo e a achar nele tanto que achava em mim, parava para pensar com a mão no queixo e o cotovelo apoiado na mão que lhe sobrava, usava calças gastas e um cordão a segura-las. Podia dizer-se que era um mendigo, que andava andava andava, ia para a praia, tentava cultivar coisas mas nunca foi grande agricultor. Vejo-me tanto nele, naquela loucura pacifica, naqueles olhos onde tanta curiosidade, onde tanto clamar de atenção, e toda a gente gostava dele e reclamava que era chato e no entanto não tanto isso, talvez um desespero de atenção que lhe faltava. Esta a minha gente velha, de onde eu vim e a quem herdei os méritos e as loucuras, de quem herdei os humores e os jeitos. Esta gente velha da qual hoje escrevo e reconheço a profundidade da existência que até agora me passou ao lado, me custou a perceber que apesar de já não haver neles a energia que eu sinto, há neles todo de mim, todo o meu resultado derivado deles, e por consequência também este texto deles, e da cabeça deles que me estarão a ver algures onde quer que ainda existam.
Sinto nostalgia e saudade dos tempos em que corria de um lado para o outro na casa de uns ou de outros, em que brincava sozinho por ali e a minha mãe me telefonava do trabalho a perguntar se estava tudo bem, de ver a minha irmã chegar a casa com uns livros grandes que eu julgava nunca vir a perceber, e percebi mana, já sei quanto vale o pi, já sei como se usa. E cresci, e além de ter aprendido o valor do pi, aprendi a demonstrar o valor do pi, aprendi a fazer contas complicadas e grandes, aprendi a fazer fundações, faço fundações como os meus velhos fizeram fundações para a minha vida e para a vida dos que de mim haverão de vir, e um dia quem sabe alguém que se identifique comigo, que descenda de mim diga nalgum lado, escreva nalgum lado ou reconheça nalgum lado que havia um velho dele que infelizmente morreu sozinho, que viveu ao lado da mulher que sempre amou e lhe dedicou todas as suas obras e devaneios de escrita que fazia nos tempos livres, enquanto realizava a profissão a que se dedicou, da qual gostou e quis ser bom.
Talvez um dia o futuro como sempre incerto seja no entanto um espelho não repetitivo, mas uma imagem do passado, da alegria, do esquecimento eterno que é ser jovem e apenas olhar para os grandes como protectores.

a eles...

Frequentemente...


...sentava-me no café do vizinho com uma pedra amarelada ou já cinzenta de tantos anos a servir de balcão e pedia por favor, sempre por favor mesmo sendo um serviço pago, uma imperial, um chá, um whisky, um café duplo, dependendo do dia, da hora, da vontade e do tempo. Digo frequentemente porque parece mal dizer todos os dias, não sou cliente habitual, muito menos me tratam por tu e me acolhem com um dos filhos ou dos sobrinhos. Sou mais um parente distante que por vezes aparece e por o fazer surge já na forma de receber um certo odor de saudade, uma pergunta acerca do tempo que passou, dos actos que decorreram entretanto.
Observava com carinho os cabelos mágicos da criatura que de certo não resultou do amor do proprietário e sua esposa, dois seres baixos e diria eu criados a pão e trabalho de enxada, duros de feições como os calhaus da serra, um sotaque de vs e bs trocados que enchiam o ar de palavras imperceptíveis e de um vernáculo sem carácter ofensivo que muitas vezes me faziam contorcer de dor e prazer perante tal drama da vida rústica na cidade moderna. Escolhia uma mesa ao acaso que variava de forma metódica para não demonstrar uma criatura de hábitos, imaginando sempre que se o fizesse um dia a policia ali a perguntar por mim, talvez por algum crime de paixão, algum artista mais atrevido que me tentasse levar os cabelos mágicos da moça. Então na minha cabeça, via dois senhores de roupa ligeira, ar sério a entrevistar um pai e uma mãe chorosos, apontando para a mesa do canto dizendo, sentava-se ali todos os dias às 10, lia um livro ou olhava em redor durante uma hora, saia para algum lado que não lhe sei a vida fora daqui e voltava depois das cinco para ficar até quando se lhe desse a vontade ficar, se soubesse teria servido veneno para os rato misturado com a bebida naquele dia. E seria assim na minha ideia romântica de ser perseguido por amor que eu cometeria a loucura do crime e destruiria uma série de vidas, só para poder sentir na pele a sensação por certo deliciosa do martírio.
Imaginava flores atiradas ao chão e rios de lágrimas, pedidos de casamento no meio da rua, bilhetinhos nas chávenas do chá dizendo és tão bonita palavras altas respondendo és tão parolo oh cota. E no entanto eu e ela na mesma escola quando pequenos, na mesma turma, ela lá à frente junto da professora com as amigas a fazer o que sabia tão bem fazer, portar-se bem, copiar pela esperta do lado e silenciosamente acabar o ciclo ao mesmo tempo que eu sem nunca ter estudado que a via muito bem sair após as aulas com um tipo qualquer em roupas sujas de cimento e tinta, fumando um cigarro achando-se estrela de cinema. Voltei para onde tinha nascido porque quem me fez nascer já não nesta casa nem neste mundo e assim assumi o meu lugar de patriarca à cabeça da mesa ordenando que a cadeira vazia ao meu lado direito arrumasse a roupa e a loiça, que a cadeira vazia ao meu lado esquerdo comesse tudo a até ao fim, mesmo sendo o jantar sopa de grão que me fazia querer arrancar o estômago à colherada ao invés do engolir colher após colher daquele caldo quente e odioso. Tinha-a voltado a descobrir por engano, entrando numa porta aberta ao lado de um janela enorme com um anúncio gigante de uma marca de tabaco à mistura com garrafas de aguardente nas quais a espessura da camada de pó atesta a antiguidade, os mesmos cabelos sem dúvida mas algo na cara menos alegre menos brilho, mas o motivo da minha paixão mantinha-se como sempre, a beleza grande e serena. Não a reconheci antes sair. Levava-a na cabeça por engano quando percebi que ela afinal ainda existia neste bairro. Nunca deveria ter saído como eu sai, não deve ter querido seguir para a França ou para o Luxemburgo com o namorado do cimento. E agora onde estaria ele?
Morava perto percebi rapidamente que a curiosidade estava a dar lugar a uma necessidade de a ver, seguia-lhe os gestos, adorava a forma como pousava o tabuleiro na mesa suja de café derramado, como suspirava frequentemente olhando para a rua, para o sol que nunca mais se afastava da rua e lhe dizia que estava na hora de ir embora, de voltar ao sitio de onde vinha todas as manhãs, e eu suspirando para que se o sol fugisse que a mão dela se estendesse para mim e a boca dela me dissesse vem, vamos juntos hoje cozinho para dois, sento-me à tua direita e não precisas de ordenar que limpe a loiça e arrume a roupa, não te faço a sopa que detestas e espero acordada que voltes do café depois do jantar, e deito-me junto de ti e tu tranquilo, sem pensar que vives sozinho. E eu não vivo sozinho, vivo numa cama com outra pessoa que teria de pedir para dormir no sofá, avisar para não fazer muito barulho porque a criança no quarto ao lado cheia de traumas porque filha de um lar destroçado.
Apagaria a luz e no dia seguinte a criança e a mãe desaparecidas, roupas, brinquedos, cheiros, tudo apagado e eu feliz junto dos cabelos, a respira-lo como se fossem ar, eu a abraça-los e eu na rua a vê-la com o tipo sujo com as mesmas manchas de cimento e eu perdido de ciúme e sem o meu ar para respirar, eu a passar por eles na rua estreita entre a minha casa e o café, eu de carro e eles a atravessar a passadeira, e na minha cabeça o policia a entrevistar os donos do café apontando para o canto observando com o canto do olho a cadeira mais afastada, perguntando acerca do álcool, do café, dos olhares, das manobras suspeitas. E promessas de veneno para ratos no próximo café, na próxima cerveja, e no entanto o que parecia um crime apenas uma distracção de momento, apenas a imaginação de dois senhores sérios vestidos com roupa ligeira a perguntar por mim, eu distraído julgando que o pé carregava no travão e quando dei por mim curvava a esquina, virava na próxima à esquerda como quem deseja seguir para os lados do rio, e nem notei se alguma nódoa de cimento no chão depois de passar.


sexta-feira, 13 de agosto de 2010

No princípio...

... era o verbo? Ou seria antes uma vontade enorme de mudar? Costumeira tradição de quem se sente sozinho e aborrecido por o estar. Sentia muitas vezes a dor profunda que era passar na rua e ver pessoas com as quais poderia falar e não falava, com pessoas com as quais queria viver e não vivia, sei lá, algo em mim se enche e se retorce em busca da satisfação que é a curiosidade. Como seria viver com o Sr. José Joaquim que encontrei ontem no metro? Buscar nele os hábitos, as roupas, entender o que faz o SR. J.J. ser diferente do Sr. R.J que lhe partilha o Joaquim do nome.
Percebem a minha insatisfação?

Claro que não percebem, assim como eu não vos percebo a vocês que por alguma forma me dizem que sim, me entendem a ânsia e a busca. Liguei à pouco para alguém, talvez não tenha ligado, enviei uma sms a pedir para poder ser escritor, deixar de fazer esta coisa que faço. Percorri alguns sítios por ai e vejo tanta gente dentro de uma pele que não lhe corresponde, tal como a minha não me quer corresponder. Uma bolsa de "pele", crie-se um ebay para troca de vidas, troco a tua vida pela minha, a minha pela de duas pessoas diferentes e aguardo que essa me diga exactamente a mesma coisa que a minha me diz hoje, és confuso e esquece lá se pensas que esta pele é melhor que a anterior, não é e apenas te fará sofrer de forma diferente.

Vícios de um ignorante português que um dia desejou correr o mundo e agora nada mais pensa senão em voltar para a sua casa, esquecer que algum dia soube onde ficava o aeroporto, esquecer que algum dia disse "eu vou". Houve dias em que disse sim e me arrependi, este um deles, devia ter dito não, esqueçam, ponham-me na linha do desemprego que não me importo, na violência do trabalho precário que me estou marimbando, eu pinto casas, eu arranjo portas, eu gosto de aprender, sei lá eu faço alguma coisa para poder chegar a casa antes das sete da tarde, ou que seja depois das sete da tarde, e vê-la a rir para mim, sentir o cheiro delicioso que sai da pele dela, dizer que se alguma vez eu longe dela eu nunca com mais ninguém, eu nunca com mais nada que não esse conforto imenso que se poderia uma vez chamar de amor, outra vez de dependência outras apenas de comodismo.

Ingrata cabeça que confunde comodismo e amor na mesma frase, e porque não dizer que o amor é cómodo e nos ajuda a sentir-nos seguros e tranquilos? Porque não dizer que apenas dizemos Amo-te porque não temos a coragem nem a paciência para aguardar que alguém nos diga primeiro que de nós sente amor, ou seja que não teve a paciência necessária para ganhar o jogo.

O princípio é simples e nunca foi o tal verbo do misticismo, o principio sempre foi a honestidade procurada em mim e nos outros.

Vou talvez ser honesto umas vezes por outras, apesar de tudo confesso que sempre fui demasiado mentiroso a escrever ficção, talvez defeito censuro-me no meu exagero dramático.

Talvez defeito...