terça-feira, 2 de julho de 2013

Cortei...

... os pulsos esta manhã, não da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda como quase todos fazem, da mão para o cotovelo para que não tenha como fechar o corte e que a coisa fique pelo meio. Pensei muito antes de o fazer, e agora que o fiz, sinto-me satisfeito por assim acontecer. Justificar a vida sempre foi difícil e de facto encontrar motivo para a mesma ainda menos.
Porque hoje de manhã e não ontem, o hoje há tarde? Não sei, não posso entender nem explicar, aconteceu, na mão a minha querida navalha de barbear, afiada como bisturi e comecei a cortar devagar e a perceber que não havia dor, apenas uma cor diferente a sair da minha pele, do outro lado a mesma coisa, apesar de mais difícil o corte, o mesmo efeito.
Deixava algures uma carta escrita há anos, guardada há anos acerca de algo que há anos na minha mente, dizia:

Hoje, cometi o maior o mais egocêntrico e o mais altruísta crime que alguém em vida pode cometer contra um si próprio, libertei o mundo da minha existência sob a forma de um corpo gélido no chão rodeado de liquido vermelho coagulado. E apesar de ser uma imagem grotesca esta que ficou agora marcada na cabeça de todos, o que fiz tem apenas um motivo, uma justificação, nestes meus 55 anos de vida, apesar de tantas tentativas, nunca consegui justificar a minha existência do ponto de vista de pessoa. Nunca encontrei o meu rumo, nunca encontrei o meu centro, nunca entendi onde queria estar amanhã ou depois, nunca percebi o que se passava ao meu redor. Nunca quis perceber devo corrigir-me. Eu não de cá, de outro lado qualquer menos deste mundo. Assim para que viver? Não vale a pena.

Algo do género, parafraseando agora que as forças já quase que se foram, que o meu coração bate cada vez mais devagar e sinto uma dormência onde antes os meus pés e as minhas mãos. Pergunto-me agora, de medo, de preocupação, será que estou para alcançar ao tal mundo onde finalmente julgo pertencer? E se apenas uma fantasia, uma falta de conformidade minha para com tudo e todos e apenas isso, nada mais que uma sensação de mal estar baseada em nada de transcendental? Seria possível voltar atrás agora? Era se alguém entrasse e me encontrasse estendido no chão (frio?) da casa de banho, se alguém tivesse escutado a minha queda há algumas horas atrás, não creio que passe alguém. As senhoras do serviço social só pela manhã de amanhã, vão achar estranho que não abra a porta, vão pensar, dorme coitado, e a comida do dia no vizinho como das outras vezes, haverei de ir busca-la pensará, ou não como em uma ou outra ocasião. De certeza outra fase de afastamento, de reclusão, e três ou quatro dias depois, já com algum mau estar no ambiente a policia e os bombeiros irão arrombar a porta e ver-me aqui, deitado, arrependido de ter feito o que fiz porque me matei e depois de morto, depois e consumado eu a querer voltar para trás a pedir por favor que entrasse uma pessoa que nunca vai entrar, e a perguntar-me porque nunca tive filhos, porque nunca quis uma mulher ou uma mulher me quis, porque não estudei, porque não já não sei quase falar, porque nunca trabalhei e sempre vivi da boa vontade de uns e outros, de uma pensão qualquer que uns pais destruídos me conseguiram para pagar este quarto nos fundos do prédio onde sempre vivemos e agora apenas eu.
Dos outros não sei, nunca fui de saber, nunca fui de querer outra coisa que não gritar, gritar por não saber o que queria e atormentar, parece que alguns irmãos, lembro-me de alguns mais velhos, longe já sem caras, de um velho e uma velha que até aos meus dez anos ainda caminhavam, depois um numa cama e o outro num caixão, juntaram-se rapidamente na mesma cova, eu se irmãos, não os conheço, sabe Deus se não já na mesma cova com os outros. Sabe Deus se eu na mesma cova onde todos eles juntos, sabe Deus se eu mesmo na morte sentindo que não pertenço a esta gente e a estes corpos.

Voltaria atrás neste momento, se apenas uma coisa diferente deste nada de rotina acontecesse, e talvez por isso eu aqui, que do nada nunca algo aconteceu.

ficção.

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