sábado, 5 de fevereiro de 2011

Uma porta...

...aberta, do outro lado luz, demasiada luz para que se conseguisse ver a banal parede de branco amarelado pela idade. Sentado na cadeira contemplava o que fazer com um pedaço de terra que ainda ia existindo no quintal. Solenemente irritado abanava a cabeça como se algo preso no seu interior, como se de lá não quisesse sair. A confusão instalara-se no momento em que tinha acordado e agora com a luz no seu auge apenas se sentia limitado no horizonte, não na estranheza e na clareza do pensamento que tentava sacudir para fora do crânio. Tinha suportado demasiado já de o que quer que seja para continuar a poder levantar-se, para poder novamente enfrentar o mundo lá fora, talvez uma aversão da luz forte de um sol tropical de meios dias tórridos e infinitamente lentos. Recordava o brilhante de umas escadas, o tom bonito da pele das pessoas que passavam por ele nesse dia em que viu o mais banal par de olhos castanhos que alguma vez poderia ter imaginado. E nesse dia em que apenas uns cabelos pretos como tantos outros por ai espalhados. Tinha saído cedo do trabalho, cruzado a rua, olhando para trás um homem num terraço a 3 ou 4 andares do chão, uma distância enorme para lhe distinguir as feições, pele morena, pele castanha de vendedor de bugigangas e relógios falsos, de encantador de serpentes e de revolucionários pacíficos, acenava com o braço direito levantado, acenava como se numa ilha deserta e o homem na rua o único meio de o salvar. Não sabia quem era, nunca o tinha visto e portanto do outro lado da rua o seu olhar desviou-se novamente para o caminho irregular do passeio, evitando pedras de calçada soltas, crianças que corriam e brincavam pela rua, adolescentes que tentavam vender cigarros aos estrangeiros, ele próprio um estrangeiro debaixo de um sol de fazendas de café e plantações de algodão. O cheiro inconfundível de água estagnada por todo lado, e a imaginação corria sempre para como teria sido quando esta rua ladeada de cadáveres mortos pela fome e pela escassez, quando apenas os cães por aqui brincavam, quando apenas a morte aqui vendia. Uma rápida e mórbida imagem da se livra em dois passos entrega-o para a rua em cruzamento à direita e a selva praguejada por mosquitos, o som das pássaros a desaparecer a cada passo, a cada estalar de ramo, o da frente a gritar emboscada, a metralhadora a abrir fogo e o da frente já sem gritar, apenas a abrir os braços para o céu e a permitir que o seu corpo estremeça a cada novo tiro, e eles no chão, procurando no chão um inimigo imaginário, nunca se apercebendo que o inimigo eles, que quem atirava em si próprio era o da frente, e que a granada não lançada para o meio da companhia, deixada cair pelo cabo, a visão de si enrolado num cobertor ouvindo os morteiros, ouvindo o zumbir de beija-flor dos helicópteros levantando apenas para se virarem e matarem toda a gente. O pensamento fê-lo suar de medo, entrou pela porta de um edifício com um ar importante e subiu as escadas, no topo entre tantos olhos aqueles banais olhos castanhos, aquele banal cabelo preto sem qualquer fantasia, sem qualquer novidade sorriram, apertou-lhe a mão, vinha para estar com ela, mal se conheciam, mal se tinham falado, mas por imposição das circunstâncias, ela ali com ele. Tinha-a conhecido anos antes num pequeno encontro de trabalho, tinha regressado agora para ficar. Depois de terminada a ocasião, entraram ambos para o carro dela e seguiram para casa, disse-lhe vamos, levo-te a casa, já é tarde. Ele acedeu, entrou e sentou-se no lugar do passageiro, passaram pela rua da guerra, pela rua dos cadáveres, passaram em frente do mar e uma lua grande reflectida na água fez com que lhe pedisse para parar o carro junto da areia, os dois sentados lado a lado a olhar uma água escura cortada pela prata brilhante do luar deixou-os calmos, ela perguntou-lhe acerca do dia, e ele respondeu-lhe que banal, ela respondeu-lhe acerca da ocasião onde os dois juntos e ele respondeu-lhe que sim. Sem compreender esqueceu-se de como se falava com alguém e deixou-se olhar para a paisagem. Odeio-te disse-lhe enquanto lhe colocava as mãos em volta do pescoço, detesto essa tua banalidade.
Neste momento a luz lá fora ainda mais forte, quase só branco, a porta que teimava em ficar aberta, que permanecia aberta desde a noite anterior evitava que se visse o branco amarelado pela idade da parede em frente, quase que lhe impedia de abrir os olhos, quase que o impedia de ver um homem sentado numa cadeira como se o observasse do alto, e o homem que não lhe respondia ao aceno virava a face para o outro lado, o seu ombro direito descaindo arrastou o resto do corpo para o chão como se de uma âncora. A luz forte do sol tórrido impedia que o vermelho em seu redor se deixasse ver, confundia-se com tudo, impedia-o de se ver ao longe como um pássaro deve ver os homens, como devia ver os mortos na rua, ou no mato, ou nesta casa.

ficção

Sem comentários:

Enviar um comentário